Cristóvão Crespo ‘Spectramorfoleto’
Exposição de Cristóvão Crespo, de 23 de Maio a 7 de Junho.
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Texto de Francisca Carvalho
You read any Greek myths, puppy? The one about
the gorgon Medusa, particularly?
I used to wonder what could be so terrible that you
couldn’t survive even looking at it.
Until I got a little older and I figured out the obvious
answer.
Everything.
Mike Carey & Peter Gross, The Unwritten, Vol. 1: Tommy Taylor and the Bogus Identity
“O desenho está sempre inacabado” disse-me uma vez o Cristóvão. Olho para os desenhos que ele me vai mostrando, um a um, no chão. Há neles uma ameaça de desagregação. Vejo um corpo – enxame de partículas – a ser lentamente reunido. A mão que vai reunindo é a mesma mão que desagrega. Esse corpo, sempre o mesmo, vai-se anunciando em cada desenho. Anuncia-se, em muitos deles, como pele, pele crescente que se plasma na porosidade do papel. Anuncia-se, noutros, como fóssil. Destroços fósseis arrancados de um corpo maior, ainda vivo.
Várias operações se congregam aqui – Sou cirurgião, anatomista, taxidermista.
A mesa de trabalho está repleta de instrumentos cuidadosamente dispostos. Há que preparar o corte. A lâmina é a luz que petrifica os corpos, e os torna fantásticos – seres não terrestres que se recolhem em si, ícones incompletos. É a escala que os fecha, que os guarda. Seres híbridos de prata marmórea, sem sangue nem órgãos. São pequenos monumentos vazios. Lembram quimeras de mitos ainda não inventados.
Olho para os desenhos na parede. As linhas não foram riscadas, foram ali colocadas por dedos leves, os mesmos dedos que cortaram e dissecaram.
“Se calhar fui maldoso…nem tudo pode ser bonito” – disse-me ele.
Lembra-se de ter instalado um conflito que fez rasurar e reorganizar os seus pequenos seres.
Revive em cada operação a potência das crianças sempre assassinas – pequenos deuses demiúrgicos – elas comunicam aos seus brinquedos a matéria de que são feitos; criam dilacerando; esfumam os limites do inerte – robots, animais de plástico, ervas daninhas, parafusos – tudo se anima nesse espaço esfumado, frenético, que só pára quando avistam nele um monstro imperturbável ameaçando cristalizar o rodopio.
Os olhos da Medusa petrificaram os objectos. Ele muniu-se de um exército de plástico para lhe vazar os olhos. Encarnou num cirurgião fazedor de híbridos, cobriu-os de prata, emprestou-lhes a pele reflectora, vazou-os primeiro para que não olhassem e reuniu-os um a um. Quando voltou a si disse que tinha chegado ao fim do processo da frieza. Frieza solar quando a luz se torna branca e bate de chapa nos corpos, as sombras recortam o chão como espadas, os nossos olhos cegam e ficamos quietos.
Lisboa, Maio de 2012
Cristóvão Crespo nasceu em Roanne, França em 1975. Vive e trabalha em Lisboa. Concluiu em 2005 o Curso Avançado de Artes Plásticas no Ar.Co, tendo vindo a desenvolver o seu trabalho nas áreas de desenho e fotografia.